segunda-feira, outubro 11, 2010

Os donos da bola

"Nunca tive grande jeito para jogar à bola. Quando se escolhiam equipas para um jogo no desaparecido ringue da rua onde cresci, ficava sempre para última escolha e se o número de jogadores estivesse preenchido, ia assistir ao jogo da parte de fora do campo. Como de uma maneira ou outra sempre acabei por seguir aquela máxima que reza "se a vida te der limões, faz uma limonada", aceitei o meu destino em relação à prática de futebol na rua e concentrei-me noutras coisas, e claro que cá fora podia aprender-se muito sobre os outros miúdos e seus caracteres, feitios e manias.
Havia de tudo na minha rua – desde os não jogadores como eu até outros que se tivessem tido mais juízo poderiam ter ombreado com alguns dos craques dos três grandes clubes de Portugal facilmente. Entre os dois pólos estava a maior parte de nós: miúdos que davam uns toques. Havia também os "donos da bola", que eram os putos que tendo uma bola porreira para jogar – um bem raro lá na zona – se viam a si próprios como reis e senhores do pedaço, já que se as coisas não lhes corressem de feição, sempre podiam pegar na bola e ir para casa. Não jogavam mais mas também ninguém se ficava a rir. Sendo assim, os "donos da bola" tinham vários privilégios, privilégios esses que derivavam muitas vezes em poderzinhos: jogavam sempre de início (pois se eram eles que escolhiam a sua própria equipa), falavam mais alto, mandavam bocas a seu bel-prazer e por aí fora, enquanto o resto da malta ia aguentando aquilo e engolindo sapos porque o prazer de jogar tornava tolerável aquela ditadura no microcosmos do ringue.
Mas há sapos e sapos, e de vez em quando aparecia um tão enorme que não havia boca ou estômago que o aceitasse e o dono da bola lá levava umas pingas valentes e ia para casa com a bola debaixo do braço, bem amassado. A rapaziada ficava uns dias sem bola, mas ninguém se arrependia do sucedido. Rui Moreira, o comentador do ‘Trio de Ataque’ que defende naquele programa as cores do seu FCP, abandonou a emissão de terça-feira em directo após a insistência de António Pedro Vasconcelos em falar sobre as divulgações de novas escutas do processo ‘Apito Dourado’. E fez-me lembrar os donos da bola lá da rua. Bom domingo, minha gente."
Pacman in "revista Correio da Manhã" domingo 10 de Outubro de 2010

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